domingo, 4 de março de 2018

Ribeira


Ribeira

Acrílico sobre tela
60 cm x 90 cm 



Naquele dia de mil quatrocentos e quinze, o Sol nascia sobre o rio Douro com uma estranha luminosidade. E nas margens do rio tudo se transformara num arsenal. Arsenal gigante, onde se construíam naus e barcas para uma grande aventura marítima. Aventura rodeada de mistério…
 Por isso mesmo, por nada se saber ao certo, os boatos multiplicavam-se, chocavam entre si, tomando por vezes foros de revelações sensacionais. E assim, nessa manhã bonita e estranha, Mestre Vaz e um dos seus ajudantes, o moço Simão, trocavam ideias e palpites, perante a atenção curiosa dos que os rodeavam. — Pois é como lhes digo, rapazes! Estou certo que tudo isto é para levar a Senhora Infanta Dona Isabel até Inglaterra, onde vai casar… E Mestre Vaz olhava os circunstantes num ar de desafio, como se ninguém pudesse pôr em dúvida a sua afirmação. Mas enganou-se. Simão, o jovem Simão, não concordava. — Ora, Mestre Vaz, não diga semelhante coisa… Cá por mim, já sei: esta armada que estamos a construir servirá para conduzir el-rei, o Senhor D. João I, a Jerusalém, a fim de cumprir a promessa de visitar o Santo Sepulcro. Mestre Vaz sorriu Sorriso alegre, mas irónico. — A quem o dizes! Eras tu garoto ainda ou nem sequer tinhas nascido quando o nosso rei fez essa promessa, se vencesse Castela… E enchendo o peito de ar, e olhando profundamente para todos, Mestre Vaz concluiu, alteando a voz: — E o nosso rei venceu! Vencemos… porque eu também tive a honra de estar lá, ao lado dele! Um ar de pasmo nasceu e correu por entre os circunstantes. E o próprio Simão perguntou, em tom maravilhado: — O quê? Mestre Vaz foi também nessa armada? Sentindo-se confortado com a surpresa que suscitara, Mestre Vaz avançou um pouco para Simão e disse lentamente: — Sim, jovem Simão... Aqui onde me vês, tenho lutado muito por este mundo de Cristo... E rindo, voltando-se para os outros, acentuou: — Todos têm ainda muito que aprender comigo... Semicerrou os olhos, numa chamada à memória. — Foi aí há uns… trinta… há uns trinta e tal anos... Comandava-nos o Senhor D. Rui Pereira e também trabalhámos assim desalmadamente… como agora... para conseguir ter a armada pronta a tempo de ajudar el-rei, o Senhor D. João, a vencer Castela... e conseguimos! E vencemos! Nunca mais o poderei esquecer...Por instantes, pairou o silêncio sobre os homens. Cada um entre aos seus pensamentos. Cada um debruçado sobre si próprio. E foi ainda o jovem Simão quem cortou o silêncio. — Ora, felizmente, Mestre Vaz, desta vez não vamos para a guerra. Mestre Vaz olhou-o demoradamente. Intencionalmente. E disse apenas: — Sabe-se lá, Simão, sabe-se lá... E logo, vendo o sol a estender-se sobre o rio, deu o grito de alarme: — Eh rapazes, são horas de começar o trabalho. Vamos a ele! E todos se atiraram à sua faina, na ânsia de não perder tempo... Foi só na hora do almoço desse dia que Mestre Vaz e o jovem Simão voltaram a encontrar-se. — Olha, aí vem a tua mãe, Simão. — Já a tinha visto, Mestre Vaz... Obrigado. E vem com cara de quem traz novidades. O outro riu-se. — Até parece que nem conheces a tua mãe... Nunca se viu a Senhora Joana sem novidades para contar... E voltaram a rir. Mas a Senhora Joana escutara também as últimas palavras. — Como? Que dizeis vós? Então não sabeis ainda o que se conta por aí? — Ora, minha mãe... são rumores com certeza... Esta gente só sabe espalhar rumores. A Senhora Joana revoltou-se. — Não são rumores, não senhor... E aproximou-se, em ar de segredo. — Disse a Senhora Miquelina, que ouviu à tia do Senhor D. Luís de Almeida, que estava a conversar com aquela senhora que é prima da Senhora Abadessa... Numa gargalhada espontânea, Mestre Vaz não resistiu a interrompê-la. — Eh, Senhora Joana, por favor pare lá com essa lenga-lenga e diga o que sabe duma vez!... Ela parou, para respirar melhor. — Ah, ele é isso? Pois ficai sabendo que esta armada é para ir a Nápoles com os Senhores Infantes D. Pedro e D. Henrique, que ali vão casar… E ficou-se à espera da reacção de pasmo dos dois homens. Mas, em vez de pasmo, surgiu a risota. — O quê, Senhora Joana, logo os dois ao mesmo tempo? A mulher fitou-os com misericórdia. — Pois claro! O Senhor D. Pedro vai casar com a rainha viúva da Itáia. E o Senhor D. Henrique... Foi a vez do jovem Simão gargalhar. — O quê, minha mãe? Então pensa que o Senhor D. Henrique vai casar?... Oh, mãe, não diga tal coisa!... Acabou por ser a mulher a mostrar-se surpreendida. — E... que tem isso de especial? Mestre Vaz adiantou-se. — Oiça, Senhora Joana... Já que quer saber a verdade, não é nada do que pensa. Eu já disse ao seu filho... Mas ela não o deixou terminar. Embalada por uma onda de brio ferido, volveu-lhe, irada: — E o Mestre Vaz tem a mania que sabe tudo, não é verdade?... Olhe que também se pode enganar... O outro abanou a cabeça toda branca. — Com a idade que tenho, Senhora Joana, já não é muito fácil a gente enganar-se... — Ora, se vamos falar em idades, estamos bem servidos, Mestre Vaz! O jovem Simão viu-se obrigado a intervir. — Bem, bem... Não se zanguem... Quando se encontram, ficam empre a caturrar... Vamos ao almoço, que são horas. A mulher calou-se e começou a dispor as coisas para o almoço. Por seu turno, Mestre Vaz resmungou: — E é aproveitar, porque temos de comer depressa... Isto ainda vai muito atrasado… e dizem que o Senhor Infante D. Henrique vem cá no domingo... E, de facto, dessa vez não foi boato... O infante D. Henrique apareceu inesperadamente no Porto, para ver o andamento dos trabalhos... O seu olhar arguto passeou lentamente sobre a canseira em curso… Parecia um formigueiro de homens de tronco nu, trabalhando quase sem descanso... Os carpinteiros levantavam no espaço os esqueletos de madeira das naus e das barcas em construção... As serras silvavam… Os martelos batiam... Os machados cortavam... Uma autêntica sinfonia de trabalho, para compor a nova armada!  Deixemos agora o campo real da História, que tem servido de cenário à nossa evocação, e entremos na penumbra da Lenda... Conta, na verdade, uma tradição já muito velhinha que o infante D. Henrique, apesar de tamanho esforço, entendeu que o esforço tinha de ser maior ainda. E decidiu falar com um dos seus homens de confiança. Precisamente o Mestre Vaz. Mandou-o chamar. Mestre Vaz apresentou-se sem demora. — Aqui estou, Senhor Infante... Recebi o vosso recado e vim imediatamente. O Infante fez-lhe um gesto amigo. — Muito me satisfazeis com o vosso zelo, Mestre Vaz. Aproximai-vos. Mestre Vaz deu alguns passos. Lentamente. Hesitante. — Senhor, é assim tão importante o que tendes para me dizer? — Mais do que podeis julgar. E baixando a voz, o Infante rubricou: — O que tenho para vos dizer... é segredo! Mestre Vaz ficou perplexo. — Oh, Senhor Infante... Eu não mereço... Um breve sorriso desenhou-se no rosto duro de D. Henrique. — Não tenhais receio... Escolhi-vos, porque vos sei leal e fiel. E fazendo novo gesto para que ele mais se aproximasse, continuou: — Todos esses rumores que por aí correm sobre o destino da armada andam longe da verdade! Mestre Vaz abriu a boca para falar, mas calou-se. O Infante fez-lhe sinal para que se pronunciasse. O velho marinheiro, então, um pouco maliciosamente, confessou: — Eu tenho calculado isso mesmo, meu Senhor... Pareciam-me boatos só para desviar a atenção. O rosto do Infante abriu-se em novo sorriso. — Tal e qual, velho mestre, tal e qual!... Mas vós ides saber a verdade. Calou-se, como que meditando. E inclinou-se depois para diante, dando uma inflexão mais dramática às palavras. — Só vós, compreendeis bem?... É necessário que não saia desta sala uma única palavra do que vos vou dizer... Em contrapartida, preciso absolutamente que me ajudeis depois com toda a vossa experiência. Como se fizesse um juramento solene, o velho marinheiro endireitou-se, e garantiu com voz firme e resoluta: — Contai comigo inteiramente, Senhor Infante! — Obrigado! E devagar, medindo as palavras uma a uma, D. Henrique fez a grande revelação: — Esta armada que estamos a construir, Mestre Vaz... destina-se à conquista de CeutaDiante dos olhos espantados do velho marinheiro, prosseguiu, já num crescendo de entusiasmo: — Sim, à conquista de Ceuta! El-rei meu pai consente que partamos! Depois, ergueu-se ele também e, num ar de profeta, acentuou: — O meu grande sonho vai finalmente tornar-se realidade, Mestre Vaz... Nós conquistaremos Ceuta! O velho marinheiro persignou-se. — Que Deus vos oiça, Senhor Infante D. Henrique, que Deus vos oiça! Houve uma nova pausa entre ambos. Pausa feita de sonho e de esperança... O Infante olhou bem de frente para o velho marinheiro de cabelos brancos. — Agora, mais do que nunca, preciso de vós e de todos os homens experientes e dedicados como vós, Mestre Vaz! É necessário trabalhar ainda mais… fazer sacrifícios ainda maiores... Percebeis o que quero dizer? Mestre Vaz deu um passo em frente. — Percebo, sim, Senhor Infante! Quereis que trabalhemos noite e dia, sem cessar... para que a armada esteja pronta a partir numa data certa... O Infante D. Henrique respirou fundo, antes de responder. — Isso mesmo, Mestre Vaz!... Eu desejo que a armada esteja pronta a partir dos primeiros dias de Julho. E para tanto, será necessário certamente um esforço enorme, quase sobre-humano.  Mestre Vaz sorriu, mostrando os poucos dentes que lhe restavam. — Pois faremos esse esforço, Senhor Infante!... Pelo reino, por el-rei e por vós... A voz cresceu, num alarde de emoção. — E também pela nossa querida cidade do Porto... Eu vos juro que faremos esse esforço! O Infante pousou-lhe suavemente as mãos nos ombros.— Como sabe bem ouvir tais palavras, Mestre Vaz! Tocado pelo seu próprio entusiasmo interior, o velho marinheiro  continuou, como se não o escutasse: — Digo-vos mais, Senhor Infante, se mo permitis... Faremos agora o mesmo que fizemos há precisamente trinta e um anos, quando daqui abalou a frota comandada por D. Rui Pereira, para ir auxiliar el-rei, vosso Pai e nosso Senhor, contra os inimigos vindos de Castela... Então, nós, Senhor Infante, decidimos dar toda a carne para mantimento e comermos apenas as tripas que iam ficando... Por isso mesmo até passaram a chamar-nos «tripeiros». E num desabafo: — Somos «tripeiros», sim, e com muita honra! De olhos iluminados por estranho fulgor, o Infante D. Henrique também não escondeu a emoção que o caldeava ao escutar tais palavras. — O que me contais é na verdade extraordinário, Mestre Vaz! Tendes razão... Esse nome de tripeiros, por sacrifício tão nobre e tão alto, é sem dúvida uma verdadeira honra para os homens do Porto. Bem vos podeis orgulhar de serdes tripeiros! — Pois, Senhor Infante, agora o seremos de novo, para que toda a carne que pudermos arranjar siga também na armada, a caminho da grande vitória de Ceuta! E no mesmo tom, como eco que repercutisse na própria alma, o Infante D. Henrique afirmou, de olhos em êxtase: — Dizeis bem, Mestre Vaz!... A caminho da grande vitória Ceuta! 
Daí em diante, segundo nos conta a mesma tradição velhinha, Mestre Vaz, embora sem revelar a mínima palavra do segredo que lhe confiara o Infante, não mais se cansou de apregoar a mesma ideia, de grupo em grupo, de homem em homem. — É o que lhes digo, companheiros! Temos de nos sacrificar de novo para honra do nosso reino e para honra da nossa cidade do Porto! Tal como nos chamaram tripeiros, há trinta anos, poderão agora chamar-nos tripeiros para sempre — porque nós guardaremos esse título com orgulho e com altivez! E o certo é que as suas palavras foram escutadas e repetidas. Transformaram-se num lema. Numa bandeira de compreensão. Acorreram adesões de todos os lados. Até a Senhora Joana, mãe do moço Simão, apareceu imediatamente a corroborar os desejos do velho marinheiro. — Comigo, podeis contar desde já, Mestre Vaz!... Daqui em diante, somente comerei tripas e darei toda a carne que arranjar para a armada! — E tu, Simão? — Eu? Bem o sabeis, Mestre Vaz… Seja qual for o nosso destino, se o Senhor Infante precisa de nós, nós estaremos sempre com ele! De olhos marejados de lágrimas, Mestre Vaz limitou-se a gritar, num brado de gratidão para todos os que acorriam ao seu chamamento: — Viva a gente do Porto! Viva o Povo Tripeiro! E, tal como narra a própria História de Portugal, mercê do invulgar sacrifício dos heróicos Tripeiros, de facto, no dia 10 de Julho de 1415, fundeava em Lisboa a grande frota do infante D. Henrique, com as suas sete galés e as suas vinte naus, a caminho da conquista de Ceuta..."
Retirado de : http://www.lendarium.org/narrative/lenda-dos-tripeiros/ 

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